domingo, abril 18, 2010

quem nunca nasceu não morre nunca

(...) o rosto
ri: sob as maxilas, os ossos


mastigam palavras, rangendo:


fala sozinho, depois pára,


e enrola um velho cigarro,


carcaça onde toda a juventude


permanece, em flor, como um braseiro


metido em cofre ou em bacia:


quem nunca nasceu não morre nunca


(...)


Pier Paolo Pasolini

segunda-feira, abril 05, 2010

No centro há uma morte, há uma sombra de crime.
a sombra das horas, o mar sobre o vermelho.
o gato branco enjaulado,
pingando a tormenta cor-de-vinho na manta.
o veneno corre assassino, em motim.
no centro há a espera e
a tua ausência
p
i
n
g
a
-
m
e
à memória o negrume da revolta.
era um animalperfeito de brancura translucida,
manchado,
crivado pelo homem-fera.
na sombra há uma morte que cobre o centro da solidão.
há um rio da sangue que inunda as raizes,
incendeia o espaço e aniquila a sua perfeição.
era um animalperfeito impregnado de beleza eterna.
era um animaleterno diluido na melancólica solidão.

domingo, abril 04, 2010

Os corpos marchavam lentos, levados pela crença milenar. Assim nasceu a grande máquina. Em tempos houve de facto o modernismo. O homem mais racional, menos poluído, mais desmascarado. Não era um coração de plástico, nem um coração mecanizado. ainda não era cinemático. Hoje a demanda foi assassinada por designios maiores de valor menor. A máquina semeia a devassidão entre o homem-fera. Provavelmente seriamos mais férteis nesta terra estéril, não explodisse em nós o barulho surdo da modernidade, a abstrata inconsciência da mente, desolando a vida em tempos de paz. O homem-fera, a grande máquina, quero dizer, o grande pensamento vazio, corroído, despedaçado pela desnecessária necessidade de ter. O homem-fera, a visão amarga. Perdeu o sossego e o perdão, cheira a desastre e a ausência.  A velocidade, direi, é esmagadora. O homem-fera não dorme nesta selva cinzenta de animais tristes. O homem-fera esqueçeu o rasto dos ossos que o antecedeu. Luta a céu aberto a descrença milenar.



The Battleship Potemkin (1925) by Sergei Eisenstein.
Agora estás arrumado, calcinado e em branco.
surges entre as palavras, coagulado, empoeirado.
és abstrato e mecanico e absoluto.
surges no fim com a solidão tóxica e com a dor petrificada no peito.
explodes com o barulho demolidor das luzes.
não podias ser tão intermédio, nem devias ser absolutamente nada.
agora bates na pele, infiltras a absoluta perdição no sangue.
perturba-me ver-te mudar de cor, ver-te atravessado no meio da casa.
no fim, isto é, no fim do mundo, quando ele chegar,
estarás por cá, enrraizado,
a reluzir a tua cor branca ou amarela, quimico e puro na memória.
eléctrico nas mãos e no ruido.
puro, nesta casa solidão da cidade nocturna.
a tua máquina tem um botão oculto,
a tua máquina está ao abandono.
a tua máquina está morta.
as tuas veias já não brilham em tons de metal.
a tua máquina vai ser demolida, vai criar raizes e ferir a memória.
és um ser soberbo,
és o ser absoluto e masculino.
extingues-te.
a tua falta tritura-me os dedos,
cobre-me as mãos com sangue cor de tangerina.
aperto tanto quanto posso o deslumbramento da tua morte,
és sangue de poeta,
frágil na alucinação.
decompõem-se os designios cósmicos inconclusivos
e a dor de te pensar em absoluto e concreto.
acabas por fim.
 
 
p.s.: deus é cinemático, fala sânscrito e é megalomano.

sexta-feira, abril 02, 2010



Deus é um astronauta e uma vez por ano foge para o centro da terra. Por baixo da terra há uma sepultura luminosa e olhos incandescentes. Como uma mina, mas muito profunda percebes? uma mina dourada e forrada a veludo. ele faz de conta que o corpo anda fugido, desculpas de quem é invisivel e só aparece de vez em quando. como hoje por exemplo, passou o dia na televisão a repetir as mesmas coisas misteriosas de sempre, ninguém o compreende, mas toda a gente finge que sim.
o deus ri e faz a sua dança macabra. ás vezes penso que ele é um mágico que nos vais piscando o olho e que nos envia barcos em direção à eternidade, mais ou menos como um autocarro sem paragens. andamos por cá a venera-lo, a beija-lo e ele acaba sempre por se meter dentro da tal caixa de madeira ou lá faz um truque e transforma-se em cinza. transformou-se numa coisa ausente, que aparece quando quer. ninguém gosta disso, do seu jogo de escondidas e de palavras pouco claras. é dificil pensar as coisas de uma maneira pouco concreta, também já faz pouco sentido pensar, somos umas máquinas, o deus ou o semi deus pensa por nós, aliás, o deus gosta de aparecer na televisão, mas também é só de vez em quando, não fosse tornar-se um hábito perigoso e a ociosidade ser maior. ele é um tanto preguiçoso, já não escreve e o pouco que deixou por cá não é claro, já pensei se seria uma anedota, sim, porque andamos em guerra a tentar adivinhar que deus será. por mim pode ser um tipo que faz magia e que envia mensagens para o telemóvel, aparece na televisão e que escreve de forma concreta. não que não o seja, apenas se limita à magia da invisibilidade e raramente me pisca o olho. nunca ninguém disse que ele era uma coisa má, porque se supôs que ele era a coisa boa, uma coisa invisivel mas boa. ou ninguém vê maldade neste jogo de xadrez transformado em guerra, ou o confundem com todas as sombras de bondade. é natural, seremos morte nada melhor que dançar, afinal o corpo está doente e a alma sofre de cancro, o olhos, esses estão cegos, quem se importa com aquilo que está escrito, ou quantas formas toma o deus, a verdade absoluta não se questiona, nem que seja mentira, o senhor deus disse e pronto, está dito. não me perguntem que deus. ele não pisca o olho à Marta, nem joga às cartas com ela, nem nunca passa na sua televisão e também não escreve poesia ou coisas a braile para nós que andamos cegos entre a sua invisibilidade.

quinta-feira, abril 01, 2010

É o tal reconhecimento inútil que procuramos, faz de nós criaturas cuja farsa incessante gera este mundo ambiguo, é paradoxal porque é impessoal e intimo, é uma questão de matar os afectos, de quebrar de vez com a voz interior e de ignorar essa beleza constante e devoradora da vida. deixamos de ser racionais, apreciamos a guerra constante, no fundo é um quase um combate de um semideus que tenta a grande fuga, no fundo ninguém quer adiar o tremendo desespero que a morte imprecisa trouxe, nem ninguém quer dizer basta ou cair num lamento desmoronante. somos uma tensão real que ignora a voz do pensamento, parecemos isto humano e deus, domados pela ciência e loucura constantes. espalhamos o amargo desespero fragmentando até à exaustão por todas as criaturas. criamos uma civilização morta, de seres frios e animais destruidos. o semideus dança e ri, o semideus cria o reino da anarquia, e joga e os destroços vão ficando e não há racionalidade nem lamento porque as criaturas entre o deus e humano estão mortas, sujas e estragadas.



em fuga.