sexta-feira, dezembro 31, 2010

Miseravelmente apática

Reparai bem, a intenção era escrever sobre este ano, mas foi um ano de merda (perdoai-me) e não há nada que me apeteça dizer sobre ele. Um Bof era capaz de definir bem as coisas, mas não, nem o bof mais vão de todos me satisfaz. A situação agrava-se quando o meu lado voyeurzinho decide vasculhar o facebook alheio (sim, que é para isso que ele serve) e é então que dou com uma daquelas notas de uma pseudo-amiga. A dita nota era sobre 2010, o balanço era mais ou menos posítivo. Ora, esta tipa que mal conheço não teve um ano nada  miserável. Fiquei a saber que tirou a carta, começou a usar saltos e as mamas ainda lhe crescem. Mas isto interessa? Pois claro que sim, vamos lá agudizar a miserabilidade da minha pessoa. Esta criatura é provavelmente uns quatro anos mais nova que eu. Eu que ainda não tirei a carta, que não uso saltos e que coitadita sou pobre em atributos femininos. Não que isto me desperte qualquer tipo de interesse, mas, vá, são coisas que alguém mais novo que eu fez. É claro que são coisitas que eu consigo, mas um individuo miserávelmente apático nem isso faz. Percebi, então, que  começo a ficar velha e que esta tipa me incomoda realmente. Incomoda-me porque não é discreta, porque não é triste. Além de má voyeur, sou invejosa e admiro secretamente gente miserável. Faço coisas contra a minha vontade, o que me torna num monstrinho adulto. Adulta, é isso. Já sou desprezível.  Sou só meia-adulta, mais velha que adulta. Passei o ano a lutar contra mim e a fugir de nada e 2010 não só foi uma merda, como 2011 me é perfeitamente indiferente. É tudo.

segunda-feira, dezembro 27, 2010

?

Há alguma coisa que tenha escrito há muito tempo e de que goste tanto como gosta daquilo que escreve agora?

-Sim. Por exemplo, no Verão passado li o meu romance Outras Vozes, Outros Lugares pela primeira vez desde que ele foi publicado, há oito anos, e foi quase como se estivesse a ler uma coisa escrita por um estranho. A verdade é que eu sou um estranho para aquele livro; a pessoa que o escreveu parece ter pouco em comum com o meu eu actual. As nossas mentalidades, as nossas temperaturas interiores são totalmente diferentes. Apesar da inépcia, aquilo tem uma extraordinária intensidade, verdadeira voltagem. Estou muito satisfeito por ter conseguido escrever o livro quando o escrevi, caso contrário ele nunca teria sido escrito.

(Entrevista a Truman Capote, Entrevistas da Paris Review)

quinta-feira, dezembro 23, 2010

E ela ardeu

Dobrou-se sobre ela puxou-lhe fogo
Escancarou-lhe os olhos puxou-lhe fogo
Cerziu-se-lhe no peito puxou-lhe fogo
Tirou-lhe pó de cima puxou-lhe fogo
Sentiu-se tão pesado puxou-lhe fogo
Cobriu-a de ar; destapou-lhe a carne; mordeu.

Era fim de tarde era depressa era comprido
Verteu palavras tenras até já não ter voz
Chorou, soletrou-lhe o corpo membro a membro
E foi no soalho a solidão de a desventrar
Tremeu tremeu puxou-lhe fogo

E ela ardeu


(Manuel Cintra)


Tenho três blogues, podia ter uma dúzia deles e continuaria a achar pouco. 

sábado, dezembro 18, 2010

À superfície da solidão

Agora percebo; lembro-me melhor do que senti, no outro dia, à beira-mar, quando tinha a pedra na mão. Era uma espécie de enjoo adocicado. Que desagradável que era! E a sensação vinha da pedra, tenho a certeza, passava da pedra para as minhas mãos. Sim, é isso, é exactamente isso: uma espécie de náusea nas mãos.


(Jean-Paul Sartre, A Náusea)

quinta-feira, dezembro 09, 2010