segunda-feira, setembro 27, 2010

O ar passa a t r a v é s d a s p a l a v r a s

Diz que o título do título é Declives e o que o nome do poeta é António Ramos Rosa.


Diz que não é capaz de recitar aquele poema em japonês, diz, com um lapso no coração e com o perigo todo das palavras. Diz porque teme, mais que palavras, as pessoas.

domingo, setembro 26, 2010

as palavras são um perigo

as palavras são coisas #2

se a tua boca as diz
se no teu rosto as vejo
as palavras são coisas
quando as fere o desejo

e quando dizes mar
e quando dizes norte
não sei se não me acerco
de um bocado de morte

e quando dizes barco
ou quando dizes esfera
há águas que transbordam
e inundam a terra

as palavras são coisas
as palavras são um perigo
se acaso as pronuncias
quando não estás comigo

e quando tu adormeces
muda num sonho fundo
tudo se desvanece
e deixa de haver mundo.

(Bernardo Pinto de Almeida)

Dilacerantemente belo, Senhor Poeta



Voz numa pedra

Não adoro o passado
não sou três vezes mestre
não combinei nada com as furnas
não é para isso que eu cá ando
decerto vi Osíris porém chamava-se ele nessa altura Luiz
decerto fui com Isis mas disse-lhe eu que me chamava João
nenhuma nenhuma palavra está completa
nem mesmo em alemão que as tem tão grandes
assim também eu nunca te direi o que sei
a não ser pelo arco em flecha negro e azul do vento


Não digo como o outro: sei que não sei nada
sei muito bem que soube sempre umas coisas
que isso pesa
que lanço os turbilhões e vejo o arco íris
acreditando ser ele o agente supremo
do coração do mundo
vaso de liberdade expurgada do menstruo
rosa viva diante dos nossos olhos
Ainda longe longe essa cidade futura
onde «a poesia não mais ritmará a acção
porque caminhará adiante dela»
Os pregadores de morte vão acabar?
Os segadores do amor vão acabar?
A tortura dos olhos vai acabar?
Passa-me então aquele canivete
porque há imenso que começar a podar
passa não me olhas como se olha um bruxo
detentor do milagre da verdade
a machadada e o propósito de não sacrificar-se não construirão ao sol coisa nenhuma
nada está escrito afinal

(Mário Cesariny de Vasconcelos)

Há segredos e segredos


Este teve piada. 
Isto do Postsecret é como o Explodingdog, toda gente conhece. Além do mais, é sempre mais fácil ver a verdade dos outros do que as nossas. E isto tem mais piada do que verdade. Mas, afinal, quem é que disse que os segredos não são verdades, daquelas verdadinhas tão de nada que não interessam nem a ninguém.
Por mim, filha, usa três, que eu em nada disso sou abonada, mas, ao que parece a suspensão é precisa, caso contrário, corres o risco de daqui a uns anos teres problemas nas costas. 

Eu cá não tenho segredos, nem verdades, nem piadas. Aquilo da Adília do sou feliz porque sou inteligente é que é. Agora vou comer puré porque é Domingo e porque sou inteligente. 



Não digo nada para não estragar.

segunda-feira, setembro 20, 2010

Não me escreveste e já não é Domingo.
Depois de constatações e alucinações patéticas ainda tive tempo para te pensar.
A Marta, às vezes, é ridícula.


Posto isto, e quando as estrelas não te chegarem, fico à espera que me escrevas. Até lá, vou-me deitar.

Amanhã já és blog, Blog.

domingo, setembro 19, 2010

É isso

E eis que subitamente descubro o ofício cantante numa existência de papel

Caro Blog

Ou seria Querido Blog? Bem, isso agora não tem importância. Hoje, Domingo, vou fazer de conta que és um diário. Sim, porque eu nunca gostei deles, nunca mesmo. 

Mas hoje acordei nervosa e de olhos tapados. Não há magia, nem palavras de ninguém. Estive a pensar e concluí que se pudesse saltava para fora de mim. Sabes, estou presa por um fio e cansada que as pessoas gostem das minhas palavras mas que não gostem de mim. 
É que depois não sei se sou eu que me esqueço de ser eu, ou se são elas que se esquecem de ver quem eu sou. É complicado. 

Olha, o Senhor Cesariny é que tem razão, eu preciso que gostem de mim de carne e osso, não das  minhas palavras. Até porque, já como dizia o outro Senhor de seu nome Rilke, os livros não chegam, não retribuem, nem sentem ou respondem. 
Se os outros me fazem sentir tão morta, mais morta que isto que sou, então não sei o que lhes hei-de fazer. Há uma ironia no meio disto tudo, qual ser ou não ser, isso não é certamente a questão. O problema é fio que me suspende e não há forma de o cortar. E olha que eu não sou uma marioneta, não sou. Mas hoje acordei de olhos tapados como os outros nos restantes dias. E lembrei-me dele, porque achava que hoje era o dia em que ele se lembraria de mim. Mas pensei mal. E pensar por pensar, mais valia não ter pensado, quanto mais lembrar-me de que estou presa a mim por um fio. 

Vou cair nas graças do esquecimento. Onde, certamente, não são 17 e 56 e não existe um pingo de ansiedade. 

Adeus Querido Blog,
até não ser Domingo.
Ponto.







Espera!!


Toma um poema....





Não sei se me interessei pelo rapaz
por ele se interessar por estrelas
se me interessei por estrelas por me interessar
pelo rapaz hoje quando penso no rapaz
penso em estrelas e quando penso em estrelas
penso no rapaz como me parece
que me vou ocupar com as estrelas
até ao fim dos meus dias parece-me que
não vou deixar de me interessar pelo rapaz
até ao fim dos meus dias
nunca saberei se me interesso por estrelas
se me interesso por um rapaz que se interessa
por estrelas já não me lembro
se vi primeiro as estrelas
se vi primeiro o rapaz
se quando vi o rapaz vi as estrelas


(Adília Lopes,
Quem Quer Casar Com a Poetisa?)


sexta-feira, setembro 17, 2010

Pequena elegia de Setembro

Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.
Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.

(Eugénio de Andrade)

domingo, setembro 12, 2010


Enquanto dormes constrói-me um rosto de luz, no limbo do teu sonho. Toca-o e acorda-me.

Caminha comigo, peço-te, na inquietação daquele rosto, e nesta alegria suspensa na solidão.

Há séculos que te esperava para fugirmos. E não sabia que a fuga era possível pelas estradas de giestas em direcção ao mar.

Dorme, e consente que o meu coração escute o teu. Quero arder contigo, nesta eternidade feita de pontes atravessadas, kms nocturnos e segundos de asfalto.

Para trás ficou a cidade.

E tu sabes que a cidade só existe no apanhar um táxi. E perdermo-nos até amanhã – sem querer podermos dizer adeus, porque não se pode dizer adeus à paixão.

Amanhã, ou enquanto dormes – agora mesmo – vou pensar em ti. Intensamente: até que as horas me doam a pele, e o movimento dos dias passe como aves que perdem o sentido do voo – até que tudo o que me rodeia tome a forma do teu corpo.

E em mim circules – quando estendo a mão por dentro da noite e te acordo, no fogo dos meus olhos.

No fim do sono existe um vulcão.
De repente, a manhã. A bruma. Um pássaro. As coisas que me rodeiam com os seus segredos – mas as coisas, sabe-se lá, só existem porque as palavras dizem que existem. E os segredos das coisas estão em mim – e não nas coisas.

Quando subo pela haste da manhã, encontro uma cidade de cristal. Trouxeste-ma tu, na dádiva do corpo.

E se conseguisse tocar-te com a respiração, ouvia-te dizer:
- É na desolação dos dias que o meu olhar segrega o mel com que te alimentas.

Penso no que te vou deixar: nomes de flores e de estrelas para refazeres os jardins e as constelações, e o peso etéreo da minha morte – para continuares a celebrar a vida.

Insónia. Noite fria, repleta de medos. Noite sem fim.

Nada.

Levanto-me e abro a janela. Respiro fundo. Um fio de sol embate na garrafa de gin abandonada ao lado da cama.

Ponho os óculos e o dia torna-se nítido, focado, limpo, e cheira a violetas…

Às vezes, tenho a impressão de ter perdido a exactidão dos gestos e das palavras.

Estive tempo a mais sozinho – reaprendo, com dificuldade, a ser cúmplice, amigo, amante.
Não me desagrada a ideia de viver num farol abandonado. Não me desagrada a ideia que a luz se apague. Não me desagrada pensar que posso perder a lucidez.

Por isso bebo.
Beber ajuda a cicatrizar o olhar ferido da noite. Isola-nos do mundo, acende-nos os gestos, antes de nos perdermos de bar em bar.

Amantes e embriagados. Destinados à chuva das ruas, às cidades que ardem junto ao mar, ao silêncio azul das manhãs.

- Aí vem o 28 dos Prazeres… e um táxi.

- Não me abandones, fica…

E o vinte e oito passa, e passa o táxi, enquanto olhamos A Dança de Matisse na capa dum livro.

Vamos pela manhã que se ergue, suja, enevoada – onde as palavras que digo se confundem com o teu sorriso. E os semáforos mudam de cor, inutilmente.

Rua da Rosa, Travessa da Espera, Calçada do Combro. Silêncio sobre silêncio. A vida suspensa no estremecer de um abraço.
- Até logo. Se te lembrares de mim, telefona.

Fecho, por fim, as pálpebras. O teu rosto sobrepõe-se à imagem do meu rosto. A tua mão esconde-se na imagem da minha mão. E no espelho já não há imagens, nem corpos, nem mar…

Logo à noite, outra vez o olhar, os corpos, a chuva, o sono, a fuga, a alma, o dia, dos dias… o regresso. O telefone, e Lisboa a sussurrar no vento da tua ausência.

A vida é sacana. Sobretudo não é aquilo que nos disseram que era. Por vezes, quando nos sentimos a morrer, vemos como é disparatado saber que tudo vai acabar. Precisamente quando tínhamos descoberto alguém com quem podíamos falar.

Passamos a vida numa espécie de silêncio, numa mudez terrível que se quebra, ainda que raramente, diante de certas coisas que nos contaram e nos deslumbraram.

Mas é tarde. As coisas que nos deslumbraram eram efémeras, breves. E não se pode voltar atrás.

Tenho um amigo que disse:
- Sabes, a verdade nunca acaba.
Mas o que será a verdade quando estivermos mortos?

Penso no lugar secreto do Caos e da Ordem que se erguem, subitamente, diante daquele que ama, e escreve.

Um dia, disseste:
- A paixão serve para te mostrar os fogos da noite. 
Acreditei no que me dizias, mas já não consigo dormir, só morrer. O teu sorriso colou-se-me à boca.

Passo os dias a espiar as paisagens diluídas na memória que tenho de ti. Atravesso continentes que se transformam em minúsculas dores, pequenos territórios que cabem no fundo duma algibeira, ou em meia dúzia de palavras.

Lembro-me que numa viagem de comboio podemos encontrar gente cúmplice do silêncio – mas dificilmente um amigo de olhos cor-de amêndoa que te diga:
- O teu olhar é belo.
Espantado, respondes:
- O meu olhar só é belo porque se deixou aprisionar pelo teu. Nesse lugar profundo onde nos cruzamos e o mundo faz sentido. E quando a distância nos separar, e Lisboa for apenas uma impressão vaga de mal-estar, uma parte de mim pertencer-te-á.

Mentir é necessário. É a melhor maneira de esconder o que há de doloroso na verdade.

Repara, através dos meus olhos descobrirás como é a grande tristeza do mundo. Apenas isso. E, quando aqui não estiveres, espetarei todas as facas que encontrar nas paredes febris da noite.

Talvez sangre dos pulsos. Talvez te escreva. Talvez…

Olho atentamente as fissuras do tecto. Desloco-me através delas, alcanço a noite.

O teu rosto, de quando em quando, pousa na minha solidão.

Há vinte anos que a vida se apagou nas linhas da mão, e os jardins da cidade permaneceram, todo esse tempo, envoltos na bruma. O Tejo não deixou o tempo correr.
Mas um dia, talvez agora, abrirei as mãos no escuro do quarto, e o teu rosto incendiar-se-á.
As mãos queimadas, memória da tua passagem.
Por isso te escrevo, com esta luz encostada à boca. E espalho a cinza destas palavras pelo escuro da noite.

Perder-te, levar-me-ia ao zumbido ensanguentado duma bala. A paixão, a nossa, foi construída com a lentidão das obras-primas. E nela não há equívocos, nem erros.

O teu rosto é perfeito e intenso – brilha, assim que o nomeio ou toco: sinal de vida, estremecer do mundo na melancolia das mãos.

Assim te raptei uma noite – com ansiedade e susto. E assim te mantenho vivo, e amo, dentro e fora do poema. Hoje, tudo me parece novo e antigo, em simultâneo, como se já soubesse que havias de chegar e mudar-me a vida, o rumo dela, e depois partir.

Lá fora chove. Chove sem parar. E Lisboa parece encolher-se dentro do teu sono.

( Al Berto, Dispersos)

Cara Barata, Barata Cara, Caras Baratas


Preciso que
me reconheçam
que me digam Olá
e Bom dia
mais que de espelhos
preciso dos outros
para saber
que eu sou eu

( Adília Lopes, Caras Baratas)


Raios! (dos bons), para a simplicidade da poesia. E a verdade. Ai, a verdade.



sábado, setembro 11, 2010

Lover You Should Have Come Over




O Grace faz partes dos amores... e é Sábado. Não que isso importe, mas....
Ponto.

sexta-feira, setembro 10, 2010

23

A existência do terrível em cada partícula do ar. Tu respira-lo com a sua transparência: mas ele condensa-se em ti, endurece, assume formas pontiagudas e geométricas entre os orgãos; pois todas as torturas e terrores cometidos em lugares de suplício, nas câmaras de tortura, nos manicómios, nas salas de operações, debaixo dos arcos das pontes no fim do Outono: tudo isso é de uma resistente intemporalidade, tudo subsiste e se agarra, ciumento daquilo que é, à sua terrível realidade. As pessoas gostariam de poder esquecer muitas dessas coisas; o seu sono lima suavemente esses sulcos no cérebro, mas os sonhos expulsam-no e sublinham os seus desenhos. E elas acordam, ofegantes, e deixam diluir-se no escuro o brilho de uma vela e bebem como se fosse água açucarada este calmante semiclaro. Mas, ai, em que aresta resiste esta segurança? Basta o menor dos movimentos e já o olhar ultrapassa as coisas conhecidas e amigas, e o contorno ainda agora tão tão consolador precisa-se como uma orla de terror. Abriga-te da luz que torna mais vazio o espaço; não olhes à tua volta para ver se alguma sombra acaso se ergue atrás da tua vigília com teu senhor. Mais teria valido teres permanecido no escuro e o teu coração ilimitado ter tentado ser o coração pesado de tudo o que é indistinto. Agora que todo te recolheste em ti, sentes-te terminar nas tuas mãos, refazes, de tempos a tempos, o contorno do teu rosto com um movimento impreciso. E em ti quase não há espaço; e quase te apazigua o facto de, nesta tua tristeza interior, não ser possível deter-se qualquer coisa muito grande; o facto de mesmo o inaudito ter de se interiorizar e de se adaptar às circunstâncias. Mas lá fora, lá fora tudo é desmedido. E quando lá fora o nível sobe, também em ti ele se eleva, não nos vasos que em parte estão em teu poder, ou no fleuma dos teus orgãos mais impassíveis: eleva-se nos capilares, aspirado para cima em canais até às últimas ramificações da tua existência infinitamete ramificada. Aí se ergue, aí te ultrapassa, alcança mais alto do que a tua respiração, na qual te refugias como num último reduto. Ai, e agora para onde ir, para onde ir? O teu coração expulsa-te de ti mesmo, o teu coração persegue-te, e tu estás quase fora de ti e já não podes regressar. Como um escaravelho que se pisa, assim tu escorres dentro de ti, e a tua pequena parcela de dureza exterior e de adaptação não faz qualquer sentido. 
Ó noite sem objectos! Ó janela indiferente ao exterior, ó portas cuidadosamente fechadas; instalações de tempos remotos transmitidas, reconhecidas, nunca inteiramente compreendidas. Ó silêncio no vão das escadas, silêncio dos quartos vizinhos, silêncio lá em cima no tecto. Ó mãe: ó única, que dissimulaste todo este silêncio outrora, na minha infância. Que o toma sobre si, dizendo; não te assustes, sou eu. A que tem coragem de ser, em plena noite, este silêncio para aquele que tem medo, que está perdido de medo. Acendes uma luz e já o ruído és tu. Ergue-la e dizes: sou eu, não tenhas medo. E lentamente pousa-la e não há dúvida: és tu, tu és a luz que envolve os objectos familiares e queridos que ali estão sem segundo sentido, bondosos, simples, unívocos. E quando qualquer coisa se agita na parede ou dá um passo no soalho: então sorrir apenas, sorris, sorris com tranparência sobre um fundo claro para o rosto angustiado que te sonda com se tu te indentificasses com o mistério, nele submersa, e com qualquer som abafado, combinada com ele e de acordo com ele. Haverá poder que se compare ao teu poder no domínio terreno? Olha, há reis que jazem hirtos e o contador de histórias não consegue distraí-los. Sobre o peito venturoso da sua amada o terror insinua-se nele e torna-o trémulo e insensível. Mas tu vens e escondes o que é monstruoso atrás de ti e ficas completamente à sua frente; não como um reposteiro que ele pudesse erguer aqui e acolá. Não, antes como se o tivesses ultrapassado ao apelo daquele que de ti precisava. Como se te tivesses adiantado muito a tudo o que pode acontecer e tivesses deixado para trás apenas a tua corrida para ele, o teu caminho eterno, o voo do teu amor.

( Rainer Maria Rilke, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge)

segunda-feira, setembro 06, 2010

Dorme, meu amor

Dorme, meu amor, que o mundo já viu morrer mais


este dia e eu estou aqui, de guarda aos pesadelos.


Fecha os olhos agora e sossega — o pior já passou
há muito tempo; e o vento amaciou; e a minha mão
desvia os passos do medo. Dorme, meu amor —
a morte está deitada sob o lençol da terra onde nasceste
e pode levantar-se como um pássaro assim que
adormeceres. Mas nada temas: as suas asas de sombra
não hão-de derrubar-me — eu já morri muitas vezes
e é ainda da vida que tenho mais medo. Fecha os olhos
agora e sossega — a porta está trancada; e os fantasmas
da casa que o jardim devorou andam perdidos
nas brumas que lancei ao caminho. Por isso, dorme,
meu amor, larga a tristeza à porta do meu corpo e 
nada temas: eu já ouvi o silêncio, já vi a escuridão, já
olhei a morte debruçada nos espelhos e estou aqui,
de guarda aos pesadelos — a noite é um poema
que conheço de cor e vou cantar-to até adormeceres.

( Maria do Rosário Pedreira, O Canto do Vento nos Ciprestes)

Boa noite, Marta.


domingo, setembro 05, 2010

Os Cadernos de Malte Laurids Brigge



“Ah, mas que significam os versos, quando os escrevemos cedo! Devia-se esperar e acumular sentido e doçura durante toda a vida e se possível durante uma longa vida, e então, só no fim, talvez se pudessem escrever dez versos que fossem bons. Porque os versos não são, como as gentes pensam, sentimentos (esses têm-se cedo bastante), – são experiências. Por amor de um verso têm que se ver muitas cidades, homens e coisas, têm que se conhecer os animais, tem que se sentir como as aves voam e que se saber o gesto com que as flores se abrem pela manhã. É preciso poder tornar a pensar em caminhos em regiões desconhecidas, em encontros inesperados e despedidas que se viram vir de longe, – em dias de infância ainda não esclarecidos, nos pais que tivemos que magoar quando nos traziam uma alegria e nós não a compreendemos (era uma alegria para outro -), em doenças de infância que começam de maneira tão estranha com tantas transformações profundas e graves, em dias passados em quartos calmos e recolhidos e em manhãs à beira-mar, no próprio mar, em mares, em noites de viagem que passaram sussurando alto e voaram com todos os astros, - e ainda não é bastante poder pensar em tudo isto. É preciso ter recordações de muitas noites de amor, das quais nenhuma foi igual a outra, de gritos de mulheres no parto e de parturientes leves, brancas e adormecidas que se fecham. Mas também é preciso ter estado ao pé de moribundos, ter ficado sentado ao pé de mortos no quarto com a janela aberta e os ruídos que vinham por acessos. E também não é ainda bastante ter recordações. É preciso saber esquecê-las quando são muitas, e é preciso ter a grande paciência de esperar que elas regressem. Pois as recordações mesmas ainda não são o que é preciso. Só quando elas se fazem sangue em nós, olhar e gesto, quando já não têm nome e já não se distinguem de nós mesmos, só então é que pode acontecer que, numa hora muito rara, do meio delas se erga a primeira palavra de um verso e saia delas”.

(Rainer Maria Rilke, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge , tradução de Paulo Quintela)


Acordo com o meu gato sobre a cabeça. acordo e é, finalmente, domingo. tomo um café para me recompor e tento manter essa paz que trazia do sono. saio e caminho ao som da Doing The Unstuck e penso que acordar deveria ser sempre assim. penso na tua poeticidade e no crime de te inventar em palavras inexistentes. ignoro esse pensamento, a irredutibilidade de te fazer só em palavras e me impor limites à descoberta. penso novamente na manhã, observo a paisagem, e como quase todos os dias, descubro um elemento novo. sorrio.

surge-me ao pensamento uma quantidade imensa de acordares. acordar seria ver um dos meus amigos tomar o seu chá e ler um dos seus livros pela manhã. acordar seria sentir o cheiro a compota no ar e ver outro dos meus amigos tão atencioso como sempre. acordar seria tê-la preocupada connosco. ou então tê-lo à nossa espera. e é quando concluo que isso me faz conhecer as pessoas. o acordar. acordar com elas. e surge-me a pergunta inevitavelmente "por que não convidamos nós ninguém para o pequeno almoço?" fazia sentido convidar as pessoas importantes para o começo do dia, quando ainda temos paz. sim, fazia. sorrio de novo.
não te sei ao acordar. imagino. imagino com a magia e com as estrelas sobre os olhos.
e é então que regresso a casa ainda a ouvir The Cure, transpiro poesia e paz. começo a ler Rilke e também eu me obrigo a sentar após ler sobre o jovem estrangeiro Brigge, mas ao contrário dele, as palavras nunca serão o meu fim. é simplesmente Domingo. um dos bons. daqueles que faz sentido. daqueles que ainda estão pela manhã, daqueles em que os amores se prolongam pelo dia e em que pensar não custa.