sexta-feira, setembro 10, 2010

23

A existência do terrível em cada partícula do ar. Tu respira-lo com a sua transparência: mas ele condensa-se em ti, endurece, assume formas pontiagudas e geométricas entre os orgãos; pois todas as torturas e terrores cometidos em lugares de suplício, nas câmaras de tortura, nos manicómios, nas salas de operações, debaixo dos arcos das pontes no fim do Outono: tudo isso é de uma resistente intemporalidade, tudo subsiste e se agarra, ciumento daquilo que é, à sua terrível realidade. As pessoas gostariam de poder esquecer muitas dessas coisas; o seu sono lima suavemente esses sulcos no cérebro, mas os sonhos expulsam-no e sublinham os seus desenhos. E elas acordam, ofegantes, e deixam diluir-se no escuro o brilho de uma vela e bebem como se fosse água açucarada este calmante semiclaro. Mas, ai, em que aresta resiste esta segurança? Basta o menor dos movimentos e já o olhar ultrapassa as coisas conhecidas e amigas, e o contorno ainda agora tão tão consolador precisa-se como uma orla de terror. Abriga-te da luz que torna mais vazio o espaço; não olhes à tua volta para ver se alguma sombra acaso se ergue atrás da tua vigília com teu senhor. Mais teria valido teres permanecido no escuro e o teu coração ilimitado ter tentado ser o coração pesado de tudo o que é indistinto. Agora que todo te recolheste em ti, sentes-te terminar nas tuas mãos, refazes, de tempos a tempos, o contorno do teu rosto com um movimento impreciso. E em ti quase não há espaço; e quase te apazigua o facto de, nesta tua tristeza interior, não ser possível deter-se qualquer coisa muito grande; o facto de mesmo o inaudito ter de se interiorizar e de se adaptar às circunstâncias. Mas lá fora, lá fora tudo é desmedido. E quando lá fora o nível sobe, também em ti ele se eleva, não nos vasos que em parte estão em teu poder, ou no fleuma dos teus orgãos mais impassíveis: eleva-se nos capilares, aspirado para cima em canais até às últimas ramificações da tua existência infinitamete ramificada. Aí se ergue, aí te ultrapassa, alcança mais alto do que a tua respiração, na qual te refugias como num último reduto. Ai, e agora para onde ir, para onde ir? O teu coração expulsa-te de ti mesmo, o teu coração persegue-te, e tu estás quase fora de ti e já não podes regressar. Como um escaravelho que se pisa, assim tu escorres dentro de ti, e a tua pequena parcela de dureza exterior e de adaptação não faz qualquer sentido. 
Ó noite sem objectos! Ó janela indiferente ao exterior, ó portas cuidadosamente fechadas; instalações de tempos remotos transmitidas, reconhecidas, nunca inteiramente compreendidas. Ó silêncio no vão das escadas, silêncio dos quartos vizinhos, silêncio lá em cima no tecto. Ó mãe: ó única, que dissimulaste todo este silêncio outrora, na minha infância. Que o toma sobre si, dizendo; não te assustes, sou eu. A que tem coragem de ser, em plena noite, este silêncio para aquele que tem medo, que está perdido de medo. Acendes uma luz e já o ruído és tu. Ergue-la e dizes: sou eu, não tenhas medo. E lentamente pousa-la e não há dúvida: és tu, tu és a luz que envolve os objectos familiares e queridos que ali estão sem segundo sentido, bondosos, simples, unívocos. E quando qualquer coisa se agita na parede ou dá um passo no soalho: então sorrir apenas, sorris, sorris com tranparência sobre um fundo claro para o rosto angustiado que te sonda com se tu te indentificasses com o mistério, nele submersa, e com qualquer som abafado, combinada com ele e de acordo com ele. Haverá poder que se compare ao teu poder no domínio terreno? Olha, há reis que jazem hirtos e o contador de histórias não consegue distraí-los. Sobre o peito venturoso da sua amada o terror insinua-se nele e torna-o trémulo e insensível. Mas tu vens e escondes o que é monstruoso atrás de ti e ficas completamente à sua frente; não como um reposteiro que ele pudesse erguer aqui e acolá. Não, antes como se o tivesses ultrapassado ao apelo daquele que de ti precisava. Como se te tivesses adiantado muito a tudo o que pode acontecer e tivesses deixado para trás apenas a tua corrida para ele, o teu caminho eterno, o voo do teu amor.

( Rainer Maria Rilke, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge)

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